Separei e mudei

A coleção do Eça é minha. Você me deu.

Lembrei-me do Neruda, que você nunca leu.

Separação é assim mesmo. A gente divide o passado, relembra os presentes e acha que o futuro vai ser uma festa.

Deve ter sido a tal crise dos cinco anos. Já que a outra parte não saía, tomei eu a iniciativa. Mudei. Comprei o apartamento da frente, atravessei o corredor sem entrar no elevador da vida, arrastando minhas toalhas, meus cobertores, meus projetos, minhas cuecas.

Nos anos 60 o sonho de todo jovem era se mandar. Woodstock era ali mesmo, bem mais perto que Trancoso. A gente queria distância dos pais. Para ficar sozinho e fazer coisas que perto deles não podia. Hoje a gente deixa tudo. Pra que ir embora se a namorada vem e dão um tapinha na nossa cara?

Mas a sabedoria da separação está em cometê-la antes que a situação se deteriore de vez. A gente sabe quando está na hora certa. Sabe quando você vai com ele no restaurante e parece que não tem mais nada para conversar? Sabe quando um fica no quarto e o outro na sala? Sabe quando aquele chinelo esquecido na sala é motivo pra cara feia? Sabe como é?

Entro em obras. Além das do Eça, no apartamento novo. Ele pouco vai olhar as evoluções. Faz cara feia para o piso. Pergunta que cor é aquela, meu Deus. Sente que o pai está saindo de casa. Um dia isso tinha de acontecer. Os pais crescem e um dia têm que ir embora. Tentar a vida sozinhos. Dizem que é assim desde que o mundo é mundo.

– O quê? A coleção completa do Caetano? Não vem, não. A mamãe que me deu.

Até que ele foi compreensivo. Ajudou-me a carregar os quadros, a geladeira e a cama com o colchão novo. Colchão novo que, pasmem!, ele quem inaugurou meses atrás.

Deixo ele sentado no chão vendo o Boris Casoy, já que os sofás eu levei. Tranco a porta do meu (dele) apartamento, atravesso o corredor.

Entro no meu. Fecho a porta. Enfim sós. Eu comigo. Enfim livre. Sento-me na cadeira de balanço. Balanço a cabeça e a vida. Quando percebo, já voltei umas cinco vezes para o apartamento dele que, a essa altura, já está a bagunça que ele sempre sonhou. Tinha esquecido o chinelo. Tinha esquecido a pasta de dentes. Tinha esquecido um endereço. Tinha esquecido um pouco (muito) de mim lá dentro.

Numa das voltas já está a Fefa com ele, rolando pelo velho colchão na sala que virou improvisado sofá. Peço licença, desculpas, pego o pequeno abajur para ler o meu Neruda.

Volto para meu ninho. Estou estranho ali. Aquela sensação do que é que eu vou fazer agora? Uma sensação mais ou menos igual a quando cheguei em São Paulo e fui morar sozinho, aos 20 anos, lá perto do campo do Corinthians. Livre dos meus pais e preso ao futuro. Presente para mim mesmo.

Estou ali, na cadeira de balanço olhando pela janela. Vejo as torres da Paulista, penso no Natal, no ano-novo. E agora, o que é que eu vou fazer? Jingle Bell. Não tá legal aqui, sozinho. Chamo a Lucila que sempre me anestesia nessas horas. Ligo para os amigos, todos eles cuidando dos filhos pequenos. Eles não podem abandonar o Lucas, o Vicente, a Dorinha, a Clara, o Joaquim. Não podem, por enquanto. Mas o dia deles vai chegar, eu sei. O Lucas, o Vicente, a Dorinha, a Clara e o Joaquim também não vão sair de casa. Eles é que vão. E não vai demorar muito, não.

Duas da manhã, volto para o apartamento velho. Ver se ele está dormindo, se está coberto. Estava acordado, lendo Eça, como se nada estivesse acontecendo. Como se fosse a coisa mais normal do mundo um pai, depois de crescidinho, sair de casa, ir tentar a vida-solo.

– Você fica com a Folha e eu com o Estadão. Você fica com a Istoé, eu com a Época. Você fica com a Net e eu com a TVA. Você fica com a Uol e eu com o Terra. Você fica com o 486, eu com o Pentium. Você fica com o amor e eu com a saudade. Posso levar o papel higiênico? E o cortador de unhas, aquele bom?

São cinco da manhã e a gente ainda está ali, na sala, dividindo as nossas vidas. Ele me deseja sorte, faz recomendações. Levou o Lexotan?

Cuidado com a gastrite.

Combino de ir ao jogo, logo mais, com ele. Você fica com o Corinthians, que eu fico com o meu mineiro Cruzeiro.

– E, por falar em cruzeiro, você tem aí uns reais?

É duro cara, cair na real, separar e mudar. Principalmente quando a gente ama, e como ama, a pessoa separada.