Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te matar.
Esta é a primeira frase do livro O Amor é Fodido, editado agora no Brasil pela Francisco Alves. Carlos Leal, dono da editora, me manda o livro com um bilhete: por causa do título a mídia anda com vergonha de tocar no assunto e os livreiros com escrúpulos de o colocar nas vitrines ou montras, como chamaria o autor, o português Miguel Esteves Cardoso, 52 anos.
E ele explica o fodido do título logo no começo:
Por que é que fodemos o amor? Porque não resistimos. É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja pelo menos parcialmente fodido. Tem que haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.
Miguel Esteves Cardoso é hoje, na minha opinião, o melhor escritor de Portugal, anos-luz na frente do segundo colocado. A geração lusitana mais velha talvez prefira o melancólico e prolixo Saramago. Mas Miguel já conquistou os mais jovens. Seus livros de crônicas atingem 20 edições. E este seu primeiro romance já está na terceira.
Miguel tem uma vantagem sobre os demais portugueses. Filho de mãe inglesa e pai português, estudou em Oxford. Vê, portanto, os seus compatriotas com outros olhos. Ninguém como ele, consegue tão bem descrever a alma, a angústia e a melancolia dos portugueses. E gozá-los.
Miguel, além de sociólogo, é jornalista. Tem um semanário chamado Independente, que é acusado de extrema-direita. Mas não é, apesar de Miguel ser do Partido Monarquista pelo qual se candidatou a deputado e perdeu. Pode não ser da extrema-direita, mas se rotula um conservador. Um dia vi ele dizendo na televisão: sou conservador porque não quero mudar nada. Do jeito que está, está bom. Tem também uma revista mensal, a Kapa, que é como eles chamam a letra k. Uma mistura da antiga Realidade, com a jovem Placar e umas pitadinhas de Istoé.
Escreve peças de teatro, é tradutor e dorme o dia inteiro. Nunca saberemos a que horas trabalha e tanto.
Miguel Esteves Cardoso é um gênio. É a pessoa mais lúcida deste Portugal que entrou para a CEE e começou a perder as suas origens. Mas a pena e a cabeça de Miguel estão atentas. Ele não perde uma. Ele não perdoa, mata. Com seu humor finíssimo, uma mistura de Bocage com Swift, ele demole a tudo e a todos. Até a si próprio.
O cara é fodido mesmo! Veja:
– Há qualquer coisa de errado na família. A família não funciona. Sei que, como conservador, deveria defender a família. Mas não consigo. A família é indefensável. É um equívoco. É um efeito de economia. A família está a dar cabo das pessoas. E das famílias.
– A morte é um nojo. Morrer é uma autêntica vergonha. Que sentido é que faz? A vida pode não ser bonita, mas a morte é um horror. Qual paz, qual sopa de alho porro. Qual não tenhas medo, estás nas mãos de Deus! Diante da morte, o medo é a única reação sensata que se pode ter. A morte é um atraso de vida.
– A vida pode ser difícil mas a morte é demasiado fácil. A vida é diferente mas a morte é igual. A vida é comprida. A morte é um instante. Da nossa vida tudo nos é pedido e esperado. Da morte ninguém exige nada. Mais vale viver mal e errado que morrer bem a arrumado.
– Em bom português, a expressão Estás com boa cara significa exactamente: Ultimamente tens andado com má cara. A partir de uma certa idade, a cara é muito importante. De nada interessa uma pessoa sentir-se bem, ou estar bem, ou mesmo ser bem. Em Portugal, todos os check-ups do mundo não valem o olhinho arguto de um transeunte que diz Está com má cara.
– Não há nada, mas nada, mais entediante do que ouvir alguém contar um sonho. Dá sono. Para adormecer, não há melhor. Quanto mais esquisito o sonho, mais chato.
– Os melhores sonhos de todos são aqueles que nos põem a pensar e a mexer. Os únicos sonhos de que vale a pena falar são os que não nos deixam dormir.
– Voltar a Portugal é como voltar a fumar: é maravilhoso e, ao mesmo tempo, horrível.
– Os homens são brutos e insensíveis. Matam mais criancinhas, portam-se pior à mesa, cospem e coçam-se mais. Os homens – e sobretudo os homens que gostam de mulheres – são menos inteligente, menos delicados e menos civilizados que as mulheres. A única coisa que têm a favor deles, à parte certas características discutíveis, como serem menos histéricos, é as mulheres gostarem deles. Por que é que as mulheres gostam dos homens? Como lésbica que sou nunca entendi.
– Confesso. Não acredito em Deus. Recuso-me a ser ateu. Quero acreditar em Deus. Faz-me falta. Faz-me mal não acreditar Nele.
– Ser filho é difícil. Mais difícil que ser pai. É raro ouvir-se falar de um bom filho. Por alguma razão. Os filhos são sempre maus. Mamam e fogem. Sugam os pais até o tutano, dando-lhes cabo da paciência, da saúde e do orçamento e quando estão anafados e nutridos, licenciados e fresquinhos, chama-lhes senis e dão o solex à primeira oportunidade.
– O que mais notabiliza o assassino português é já estar morto. Ou pelo menos preso. Os nossos homicidas matam-se e entregam-se mal estejam despachados. Os assassinos estrangeiros fazem questão de continuarem vivos. Combinam, premeditadamente, os seus crimes, planejam fugas, arranjam álibis, dão luta aos investigadores. Os nossos, está quieto. Os assassinos estrangeiros voltam ao local do crime: os portugueses nem sequer se dão ao trabalho de abandoná-lo.
– Nós, portugueses, somos demasiados teatrais no dia a dia para sermos bons atores no teatro.
– Um menino é um fascista com lapsos de anjinho. É um tiranojunior maníaco depressivo de lágrima-puxa-risota e risota-puxa-birra, com o coração mais branquinho, a transbordar de fuligem e de maldade. É um psicopata com as asas presas nos suspensórios.
– Se há uma coisa que os portugueses não têm à mesa é finesse. A fineza é uma coisa que fazem. Não é coisa que tenham.
– Quando eu era garoto pensava que decadência significava caírem os dentes. Depois aprendi que não era. Hoje descobri afinal que era verdade.