Tudo começou quando resolvi me mudar do décimo para o quarto andar, aqui mesmo neste edifício da alameda Franca. Um carrinho de supermercado seria suficiente.
Lá no quarto andar, tem quatro apartamentos.
Eu não conhecia ainda os vizinhos no novo andar quando o fato se deu. Passei o dia levando coisas lá para baixo. Há dois dias faço isso ajudado pela Cristina, minha namorada.
Uma das últimas viagens e lá ia eu – com a Cris ao lado – descendo pelo elevador. Carregávamos o criado-mudo. O criado-mudo tem uma gavetinha.
Quando a porta do elevador se abriu, tinham duas famílias esperando. Meus vizinhos. Pai, mãe, crianças e até uma avó. Foi quando eu estendi o braço para me apresentar como o novo vizinho que tudo aconteceu. E foi muito rápido. Muito.
Quando eu tirei a mão do movelzinho para cumprimentar aqueles que agora seriam meus vizinhos, a gavetinha deslizou. Eu ainda tentei uma gingada com o corpo pra ver se evitava a catástrofe, mas não adiantou. A filha da puta estava indo para o chão, lisa como quiabo.
Estava indo para o chão com tudo dentro. E não existe nada mais indiscreto do que uma gavetinha de criado-mudo de um homem que mora sozinho. Ou mesmo que não more. Ali você vai jogando coisinhas, papéis. Coisas, enfim. Coisas que só tem um destino na vida: a gavetinha do criado-mudo.
Entre a danada escapar do móvel e esparramar tudo pelo chão, não devem ter sido nem dois segundos. Mas estes dois segundos foram sofridos. Neste pedacinho de tempo tentei, em vão, me lembrar do que era que tinha lá dentro e, consequentemente, toda a vizinhança ia ver. Além da Cristina.
Não deu outra. A gaveta caiu de quina e tudo voou. E voou tudo de cabeça pra cima, tudo querendo se mostrar. Ar livre, há quanto tempo aquilo tudo não via a luz do dia, já que ficavam debaixo do abajur lilás? E não ficou tudo amontoadinho, não. O material se esparramou legal pelo hall. Diante do que vi no primeiro bater de olhos, a ideia foi pular em cima e cobrir tudo com o corpo até todo mundo sumir dali.
Sim, na gavetinha do criado-mudo a gente joga tudo. Pelos meus cálculos, devia ter coisas ali dos últimos cinco anos. Que é claro, eu não saberia dizer. Eu não tinha ideia do que é que estava indo ao chão e aos olhos da vizinhança estupefata. E da Cristina.
Um pedaço da minha vida estava ali, no chão, sujeito à visitação pública. Uma vergonha. E o pior é que não dava para pegar tudo de uma vez. Teve pilha que rolou escada abaixo. Moedinhas rodopiavam sem parar, fazendo aquele barulhinho.
A primeira coisa que a Cristina recolheu foi um par de brincos douradérrimos. Que não era dela. E eu não ia explicar ali que eu não tinha a menor ideia de quem fosse. Podia estar ali há cinco, seis anos. As crianças olharam para três camisinhas e deram-se sorrisos cúmplices. Não foi bem este o olhar da Cris.
Aquele pequeno despertador quebrou o vidro. Estava parado às 10 e 10 do dia 23, sabe-se lá de que mês ou ano. Três edições da Playboy. Velhas. Uma da Tiazinha. Constrangimento. Pra minha sorte, bem ao lado caiu a História da Filosofia, de I. Khlyabich. E o livro daquela jovem namorada do Sallinger, do Apanhador em Campo de Centeio. Amenizou um pouco. Trata-se de um masturbador em campo de pentelhos. E as camisinhas eram de 98, tava escrito lá. Limpou um pouco a barra. Um pouco. Sim, por outro lado, mostrava que desde 98 que eu… Deixa pra lá.
Tinha o menu da minha aula de culinária de março. Naquele dia aprendi a fazer crepe de pancetta e brie, com a professora Bia Braga, junto com o Frei Betto, aluno também.
Tinha procurado tanto o Guia de Acesso Rápido do celular. Tava lá. Agora eu ia aprender a apagar os telefones vencidos da caixa.
Meus Deus, o que é aquilo no pé do garoto? Viagra! E o filho da puta pegou e mostrou para o pai que me olhou com pena, com dó: tão jovem e…
Tive que dar explicações.
– Hehe, é do Jair, que é do 103, psicanalista, amostra grátis. Tinhas dois na cartelinha de três – Já ia dar uma explicação da experiência que tinha tido com o que não estava mais ali, mas achei que os pais não iriam ouvir de bom grado, diante das crianças. Viagra é a maior sujeira, posso te garantir.
Acho que não convenci ninguém. Cris, com os alheios brincos na mão, escondeu o Viagra. Vexame total. Mas isso era só o começo da minha vida esparramada no chão de mármore.
– a conta da compra do computador que eu dei para a minha irmã;
– duas pilhas duracell que jamais saberemos se estão boas ou já usadas. Esse problema de pilhas soltas me enlouquece;
– um exemplar velho da Veja, com a manchete: Separação!
– uma foto minha com a Manoella Teixeira, jovem atriz, abraçados na porta do Ritz (-Isso foi há dois anos, fui logo explicando);
– uma cartela de Lexotan, uma de Frontal e uma de Zolotf. Pronto, os vizinhos não teriam mais dúvidas. Um louco deprimido se aproximava;
– quatro canetas bic que eu duvido que ainda funcionem;
– um marca-páginas do livro do Luiz Ruffato. Aliás, belo livro;
– um talão de zona azul intacto;
– uma capinha de celular que eu comprei há uns quatro anos e não serviu;
– uma caneta dessas de marcar textos de livros, aquela amarela, sabe? Seca, é claro.
– uma foto do Joaquim, filho da Luciana, vestido de Batman. O menino já é quase adolescente. Deve ser foto de uns cinco anos;
– um tubo de Redoxon, vencido há várias gripes;
– um lápis sem ponta. Aliás, dois;
– os originais do próximo lançamento do Cony, Pilatos, que estava ali para eu fazer a orelha. Já fiz e o livro deve sair ainda este mês.
– um papelzinho com um telefone que jamais saberemos de quem é;
– outro papelzinho com outro telefone (procurei tanto… Agora não vai mais adiantar);
– um benjamin;
– duas tomadas de telefone, aquela quadradinha que você enfia aquele quadradinho menor;
– os originais da peça da minha ex-mulher Marta Góes, Um Porto para Elizabeth Bishop;
– um tubo (suspeitíssimo) de Hipoglós;
– mais uma cartelinha (quase vazia) de Frontal;
– um disquete de computador com nada escrito nele. O que pode ter aqui?;
– um par de óculos escuros que nunca foram meus;
– uma pulseira feminina e muito cafona que jamais me lembrarei de quem é mas, no hora, ali, ajoelhado no chão, disse: da Maria, minha filha;
– umas cinco ou seis chaves que nunca saberei que portas abrir;
– moedas do Brasil, Uruguai e França. Um dólar.
– e dois tubos de KY, que quem sabe o que é, pode imaginar o meu ar de sem jeito. E o cara do 43, levava jeito de saber, pela olhadinha que deu para a esposa que ficou vermelhinha. Ela devia gostar de KY;
– mais canetas, fichas de telefone (lembra quando isso existia?);
– um livrinho mandado (e escrito) por um leitor, com o nome Ser Gay é Ser Alegre. Como explicar isso de joelhos?;
– e, para encerrar o meu derrame, um papel em branco com um beijo de batom bem no meio. Tentei dizer que era da minha afilhada Maria Shirts, mas não colou.
– e, já que estou contando tudo, um deschavador cheiroso e duas baganinhas já duras.
Fui recolhendo aqui tudo, aqueles pedaços da minha vida e colocando de novo dentro da gavetinha e ajeitando ela no falante criadomudo. E me levantei.
Entramos em silêncio no novo apartamento, certo que ia começar uma nova vida ali. Mas logo cheguei à conclusão que a gente nunca começa nada, a gente continua. Ia continuar a minha vidinha ali. Com aqueles pedaços do passado, uns vizinhos do presente e uns nacos de futuro.
Ajeitei o criado-mudo ao lado da minha cama. Fiquei olhando para o indiscreto móvel que eu achava mudo. Mas que, em dez segundos, contara cinco anos da minha vida.
Até gostei dele ter guardado ali dentro, sempre mudo, tantas coisas que eu fiz e falei.
E, preso na junção das madeiras, padecia um torturante bandeide.
Usado, como eu.
Cadê a Cristina?