Ela, a Ana Catarina, tem quatro anos. Mas tinha três quando teve um dos seus primeiros choques emocionais. E chorou de raiva.
Acostumada – desde que nasceu – a ver o avô José Gregori, então ministro da Justiça, toda noite na televisão, num belo dia descobriu que o avô aparecia também na televisão da vizinha. Se sentiu traída. Achava que o bom avô era uma exclusividade dela, neta, e não de toda a vizinhança. Acho que não chegaram a dizer que não era só nas casas da vizinhança que o Zé aparecia. Poderia ter traumatizado a guria para o resto da vida.
Deve ter pensado, a Catarina: o que é que o vovô está fazendo aqui nessa casa se ele nem conhece os pais da Carlinha?
Ana Catarina, a partir daquele dia, deve ter começado a olhar o mundo com outros olhos. E, sempre que via um senhor de cabelos brancos na televisão da casa dela, devia se vingar: esse cara deve ser avô de alguma menina mas ele está na minha casa. Hahaha!
Catarina, filha da Ticha e do Chico Millan, donos do meu bar Balcão, está passando uns dias aqui. E chove lá fora. E, daqui a pouco, não vai ter mais o que fazer aqui dentro. Cinema, sugeriu a mãe. Harry Porter, Xuxa com os Doentes (perdão, duendes) dela. Mas a menina já estava em dia com as películas.
Foi quando eu contei alguma história da vida real da Xuxa que ela me olhou incrédula:
– Mas a Xuxa existe fora?
Nós três olhamos para ela e entre nós:
– Fora da onde?
– Do vídeo, né? Do cinema, mãe. Das revistas… Ela existe?
E primeira coisa que veio na minha cabeça foi: ela deve estar pensando de quem a Xuxa é avó. A segunda: que deve ser avó da Sasha!
E continuou a brincar como se nada houvera dito, pensado ou filosofado.
Inocente e pura ingenuidade. Essa menina vai crescer e logo mais saberá que existe vida fora do vídeo e da tela do cinema. O sonho vai acabar como acabou até para os Beatles. E que a vida aqui fora não tem duendes e nem justiça, pela qual seu avô tanto lutou.
Vai descobrir tanta coisa fora do vídeo que só irá recorrer a ele quando quiser sair – um pouquinho – daqui do lado de fora.
Mas a pergunta ficou na nossa cabeça. A Xuxa e todos esses outros personagens da telinha (que Lauro César Muniz chamou de Espelho Mágico, magistralmente) existem? A própria Xuxa, a essa altura do campeonato, sabe quem é? Sabe que existe? Deve saber, pois garante que anda vendo duendes. Como a Catarina, de quatro anos.
O que será desta geração que vem nascendo conhecendo primeiro a ficção e depois a realidade? Com certeza não serão iguais a nós. Nossos pais nos ensinaram a realidade, a gente via a realidade nas ruas, nas fazendas. O resto era ficção. Os livros, principalmente. Naquele tempo a ficção era melhor do que a realidade. Avô era avô e não falava num tal de Lalau que não era o Papai Noel.
Mas tem umas pessoas que nasceram mesmo para só existirem nos vídeos e na imprensa. O Paulo Maluf, por exemplo. Eu tenho certeza que ele não existe fora das telas. Porque interpreta um personagem riquíssimo, inigualável e impagável. Deve decorar bem suas falas e – principalmente – seu franzir de testa. Tudo aquilo é ficção. Aquele homem não existe, Catarina, fica tranquila.
Tem outros, menina, também. Tem um tal de Eurico Miranda que é tão engraçado quanto o Chaves. Só que arrota diante das câmeras dentro da sua casa. E o pior, na casa da sua amiga também.
Como seria bom, minha menina, se certas pessoas que a gente vê ali no espelho mágico existissem só lá dentro. Que não saíssem nunca, que ficassem presos lá dentro, eternamente. Sim, os bons personagens da história não morrem jamais. O Mickey, por exemplo, está completando 75 anos com corpinho de quinze. E a Cinderela que já passou dos 300 anos? 305 para ser exato.
E porque vivem tanto? Por que não estão fora da tela azucrinando a gente. Já pensou aguentar o Mickey numa mesa de bar, setentão, enchendo a cara? Falando mal do Pateta? Jurando que o Walt Disney era bicha? Fora a Minie, ali do lado dele, com cara de sono e com 73 anos, fumando um cigarro atrás do outro. Dois velhos chatos.
E a pobre-rica Cinderela se viva fosse, andando pela rua – descalça – dizendo que é a Cinderela e todo mundo rindo dela? Tá bom, Cyndy. Me Tarzã! Hahaha.
Acho que o está faltando ao mundo hoje – principalmente ao nosso Brasil – é separar um pouco mais o que aparece na telinha e o que rola aqui fora. Os personagens do governo (seja ele municipal, estadual ou federal principalmente) vão lá no vídeo e só falam ficção, sorriem ficção. Sabem que ali é lugar de ficção. Você sai na rua, cai na real e não vê nada daquilo. Eles sabem que as crianças acreditam naquilo. Mas são só as crianças, minha gente.
Meu sonho é ter um carimbo eletrônico acoplado a todas as televisões do Brasil. E sempre que um deles começasse a mentir eu batia o carimbo em todas as casas: ficção! E quando aparecessem policiais-bandidos eu batia outro: realidade! Assim a gente ia educando melhor nossos filhos e nossos netos.
Pois o mundo chegou num ponto que a gente está confundindo a cabecinha deles. E, quando eles crescerem, vão achar que fomos nós que inventamos este processo de aprendizagem.
E quando os netos dos nossos netos nascerem, é provável que a primeira coisa que ouçam, antes mesmo do olha que gracinha, seja uma voz rouca de um pai emocionado:
– Desculpa, filho, mas hoje em dia é tudo ficção! Se vira!