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Homoternurismo (uma palavra que não tem no Aurélio)
A gente surgiu no cenário teatral no final dos anos 60: Timochenko Whebi, José Vicente, Antonio Bivar, Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Nery Gomide, Isabel Câmara (onde anda ela?), eu e mais alguns. A gente tinha muita coisa em comum. Todo mundo tinha nascido nos anos 40. E mais: todos filhos do Plinio Marcos e netos do Nelson Rodrigues. Éramos (naquele tempo) os Novos Autores.
Tinha mais coisas em comum: surgimos logo depois do Ato Institucional n° 5. A esquerda se apaixonou pela gente e todos nós tivemos nossos momentos de comunistas. Durante os anos 70, toda essa gente continuou escrevendo o que mais tarde seria chamado de “teatro de resistência”. Ninguém tinha lido Marx, mas a gente punha Marx no palco. Todo mundo tinha vergonha de escrever uma boa duma comédia. Todo mundo cairia de pau. Mas veio a tal abertura no final dos 70 e todo mundo foi pego de calça curta: e agora? Sobre o que eu vou escrever? Foi mais ou menos a partir desta pergunta que foi surgindo esta peça. O Grupo Mambembe me encomendou uma peça. Dois meses pensando em o que escrever. Foi quando eu resolvi escrever uma peça de trás pra frente “para chegar nas minhas raízes”.
Todo mundo — incusive eu — já havia escrito sobre a nossa geração. Mas todas as peças falavam da nossa vida sob o prisma político. E não foi só de repressão política/social que a gente foi crescendo. Tinha as outras repressões. Era hora de tocar nelas. A Igreja, o Sexo, o Amor. Nossa geração é uma geração que cresceu sob a síndrome da culpa. Há bem pouco tempo que consegui transferir as minhas masturbações do banheiro (com porta fechada) para a sala (de janela aberta). De quem mesmo eu estava me escondendo? De Deus? Mas que Deus é este que proíbe o prazer e ainda coloca culpa na cabeça da gente? E que ele nunca trepou. Nem ele, nem os papas e nem alguns padres. Não sabem o que é bom.
Portanto, Besame Mucho é sobre esses medos, essas repressões. Besame Mucho é a história de dois amigos que durante três décadas se amaram. Uma história de amor entre dois meninos, entre dois rapazes, entre dois adolescentes, entre dois homens que nasceram nos anos 60 e se sentaram no divã nos anos 70 com todas as culpas do mundo. Uma história não de homossexualismo, mas de homoternurismo: ternura entre pessoas do mesmo sexo. A amizade que todo mundo tem. Aquele cara pra quem a gente conta tudo. Aquele cara que segura todas, aquele cara que é amigo da gente, que a gente ama. Tem nada de viado, não. Coisa de homem. Coisa de homem corajoso. Coisa de homem que sorriu nos anos 60, ficou de cara amarrada nos 70 e nos 80 está aí para o que der e vier. Besame Mucho é uma história de amor entre quatro pessoas, sem as quatro paredes. O jogo é aberto.
Cansei de ser comunista. Quero ser apenas homem. Como Xico e Tuca. E meu lado feminino, que está na Olga e na Dina. A sacanagem fica por conta dos dois contra-regras. O resto é apenas ternura. Ou melhor, homoternurismo. Que, espero, um dia entre para o dicionário do Aurélio.
Mario Prata
verão/87