A máquina da Canabrava

No primeiro dia de aula, a professora de História da Economia, na velha USP da Rua Doutor Vilanova, Alice Canabrava, escreveu no quadro negro o nome de um livro sobre o mercantilismo e disse, seriíssima:

– Na próxima aula (dali a uma semana), prova sobre o livro.

Era o estilo dela, que eu já havia enfrentado no exame oral (é, tinha oral) do vestibular para economia em 1967. Me lembro que ela me perguntou qual era a diferença entre uma nau e uma caravela. Na época, eu sabia.

Mas o mundo é pequeno e trinta anos depois vim a descobrir que a Canabrava era tia da minha amiga escritora-arquiteta Lúcia Carvalho. Era tia. Morreu há um mês, já velhinha, aposentada e lúcida. Deixou sua casa – com tudo que tinha lá dentro, incluindo uma genial biblioteca – para a Lúcia.

E a Lúcia acaba de me mandar um e-mail que eu transcrevo na íntegra, sobre uma velha máquina da catedrática tia. Vamos lá.

Ouve só. A gente esvaziando a casa da tia neste carnaval. Móvel, roupa de cama, louça, quadro, livro. Aquela confusão, quando ouço dois dos meus filhos me chamarem.

– Mãe!

– Faaala.

– A gente achou uma coisa incrível. Se ninguém quiser, pode ficar para a gente? Hein?

– Depende. Que é?

Os dois falavam juntos, animadíssimos.

– Ééé… Uma máquina, mãe.

– É só uma máquina meio velha.

– É, mas funciona, está ótima!

Minha filha interrompeu o irmão mais novo, dando uma explicação melhor.

– Deixa que eu falo: é assim, é uma máquina, tipo um… teclado de computador, sabe só o teclado? Só o lugar que escreve?

– Sei.

– Então. Essa máquina tem assim, tipo… uma impressora, ligada nesse teclado, mas assim, ligada direto. Sem fio. Bem, a gente vai, digita, digita…

Ela ia se animando, os olhos brilhando.

– … e a máquina imprime direto na folha de papel que a gente coloca ali mesmo! É muuuito legal! Direto, na mesma hora, eu juro!

Eu não sabia o que falar. Eu ju-ro que não sabia o que falar diante de uma explicação dessas, de menina de 12 anos, sobre uma máquina de escrever. Era isso mesmo?

– … entendeu mãe?… zupt, a gente escreve e imprime, a gente até vê a impressão tipo na hora, e não precisa essa coisa chata de entrar no computador, ligar, esperar hóóóras, entrar no Word, de escrever olhando na tela, mandar para a impressora, esse monte de máquina, de ter que ter até estabilizador, comprar cartucho caro, de nada, mãe! É muuuito legal, e nem precisa colocar na tomada! Funciona sem energia e escreve direto na folha da impressora!

– Nossa, filha…

– … só tem duas coisas: não dá para trocar a fonte nem aumentar a letra, mas não tem problema. Vem, que a gente vai te mostrar. Vem…

Eu parei e olhei, pasma, a máquina velha. Eles davam pulinhos de alegria.

– Mãe. Será que alguém da família vai querer? Hein? Ah, a gente vai ficar torcendo, torcendo para ninguém querer para a gente poder levar lá para casa, isso é o máximo! O máximo!

Bem, enquanto estou aqui, neste ‘teclado’, estou ouvindo o plec-plec da tal máquina, que, claro, ninguém da família quis, mas que aqui em casa já deu até briga, de tanto que já foi usada. Está no meio da sala de estar, em lugar nobre, rodeada de folhas e folhas de textos ‘impressos na hora’ por eles.

Incrível, eles dizem, plec-plec-plec, muito legal, plec-plec-plec.

Eu e o Zé estamos até pensando em comprar outras, uma para cada filho. Mas, pensa bem se não é incrível mesmo para os dias de hoje: sai direto, do teclado para o papel, e sem tomada!

Céus. Que coisa. Um beijo grande, Lúcia.

É, Lúcia, a nossa querida Alice Canabrava, deve estar descansando em paz e rindo muito. E dê uns beijos nos filhos e agradeça a crônica pronta-pronta, plec-plec-plec, que eu ofereço aos meus leitores. E leitoras.