A borracharia

Tudo evolui no Brasil. Menos a borracharia. Já notou? São exatamente iguais as borracharias da nossa infância, quando íamos lá com nossos pais. Inclusive os borracheiros parecem ser os mesmos. Parecem feitos de borracha, não envelhecem.

Há algumas décadas não devem mais nascer garotos que dizem: vou ser borracheiro quando crescer. Para cada borracharia existem dois borracheiros. Um mais velho (que é para quem você vai pagar no final do serviço) e o mais jovem (que é quem pega no duro).

Duvido que alguém já viu uma borracharia limpa. Para ser uma boa borracharia ela deve ser imunda. Não é suja, é imunda mesmo. Assim como os borracheiros. Eles não lavam as calças e as camisetas há séculos.

Não há lugar para se sentar. Jamais. Você tem que ficar em pé esperando o serviço. E acompanhando atentamente.

A coisa começa na porrada, literalmente. Um super-martelo e o cara bate pra valer no nosso pneu para tirar a câmera de ar e, com uma alavanca vai girando o pé com uma maestria invejável. E tira para fora aquela coisa mole, cinza, morta. E furada.

Todas as borracharias têm a sua banheira, é claro. Uma banheira que um dia – imagino – foi branca. Se você quer saber a cor de um burro quando foge, é aquela ali. Entre cinza e marrom. E a água onde vai ser enfiada a câmera de ar? Que cor é aquela? E onde foi que o sujeito arrumou a banheira? Comprou especialmente para aquele serviço, aquela serventia? Mas é eficiente. Logo vemos as bolhinhas de ar subindo pelo furo. O borracheiro coloca o dedo no furinho e te olha. Apenas olha. Todo mundo entende aquele olhar.

Neste momento eu pergunto: os pneus já existem há mais de cem anos. Ninguém se deu ao trabalho de inventar uma outra engenhoca para descobrir onde fica o furo?

Aí ele saiu pingando com a nossa câmera de ar pelo chão, notadamente nos nossos sapatos. Enxuga. Coloca numa máquina de tortura, passa uma cola e junto um pedacinho de borracha. Comprime aquilo. Chega a doer. Aquilo esquenta, sai fumacinha.

É o momento de olharmos as mulheres peladas (e já sujas) pelas paredes. Calendários dos anos 90 e até oitenta. Mocinhas que hoje já devem ser avós, ali, testemunhas discretas de nossos furos.

Tem também um jornal de esportes do dia por aqui, cheio de impressões digitais. Não dá mais para ler as notícias que ficam à direita e à esquerda da página. Sentar, nem pensar. Agora ele enche de novo a câmera. Mais do que a gente imagina. A impressão é que aquilo vai estourar no nosso rosto. Mas – incrível – não estoura.

Enfia na banheira de novo. Esvazia e enche pela terceira vez. Ao se ajeitar lá dentro, a borracha dá um inesperado estouro e se acomoda. Coloca o bico no lugar. Pega um aparelhinho e vê a pressão. Tudo isso muito rápido, com muita eficiência, sem cursar nenhuma faculdade. Mas você sente que o cara é competente, é pós-graduado.

É aí que ele pega o nosso estepe e balança a cabeça negativamente. Você entende, o estepe está mesmo pela hora da aposentadoria. Negocia ali na calçada enquanto coloca o pneu no lugar. Você acaba comprando outro estepe.

Mas só quando você chega em casa é que você percebe que também está todo sujo, apesar de não sentar e nem encostar  em nada.

E pensa naqueles dois que te salvaram a vida. Admiro estes homens. São meus heróis.