Como é fazer um filme?
Fazer um filme é como parir um filho.
Mesmo não sendo o primeiro? A experiência é a mesma?
Não, não é a mesma porque os eventos não se repetem. Particularmente no cinema. Daí a sua novidade. Um filme é sempre um novo filme, original e único. E, uma vez nascido, você o esquece imediatamente. Ele passa a ter vida adulta, dentro da lei da natureza: depois de parido, a mãe esquece o cachorro. O cineasta já passa a sonhar com um novo projeto. No momento, não tenho outro projeto. Ainda estou fiel ao projeto em execução. É estranho, mas há sempre a sensação de algo novo que está chegando. Por mais que se tenha feito filmes – e eu já fiz muitos—pelo menos no meu caso a sensação é sempre a mesma. Você tem o domínio técnico, artesanal, enfim, você controla melhor, sabe dominar melhor o evento. É como se você tivesse tido um filho na selva e fosse ter outro em um grande hospital. Você tem consciência de que tem sob controle uma porção de coisas que poderiam acontecer. Mas, mesmo assim, elas acontecem. Então, o novo vem. Para o cineasta brasileiro, é muito difícil levantar uma produção.
Em BESAME MUCHO você teve, para a realização, todas as condições previstas no roteiro?
Tive, tive sim. Eu as criei, evidentemente. Com um detalhe. Você cria as condições mas, num dado momento da sua luta – e essa luta inicial é muito pesada, porque você é muito mais um mercador econômico do que qualquer outra coisa—a regra geral é que você, já cansado, aceita rodar em sub-condições que não eram as condições que você desejava. BESAME MUCHO não é uma superprodução, mas é um filme onde cada coisa está na sua medida exata. Eu precisava de um elenco de primeira linha. Existe um elenco de primeira linha. O cronograma previa 8 semanas de filmagem, tivemos 8 semanas de filmagens. Nem mais, nem menos, o necessário para se fazer o filme como ele foi planejado.
Você conseguiu terminar a produção dentro do orçamento previsto?
Eu gostaria de ter tido mais verba. Mas esse é um filme de 500 mil dólares (no câmbio oficial). O cronograma foi cumprido e o filme saiu dentro do orçamento. Ele não tem nenhum defeito de produção. Tudo o que foi preciso está lá. Nada está mal realizado. Pode até surgir aquela frase maldosa: “Parece cinema americano”. Se isso acontecer, não há problema. Quando eu digo que gostaria de ter tido mais verba, estou pensando na hipótese de poder pagar melhor o belo trabalho de todos.
Como você chegou ao BESAME MUCHO?
Vou começar com um exemplo: O filme After Hours, do Martin Scorcese, que aqui recebeu o título estranho de Depois das Horas. Se o filme fosse feito por um cineasta do 3º mundo, ao sul do Equador, ele terminaria com o protagonista petrificado, transformado em estátua, em obra de arte. Acabaria na agonia e no desespero. Um fim realmente para baixo. Mas no filme há um acréscimo, que eu definiria como de “acima do Equador”. A estátua quebra e o herói volta ao seu trabalho. O espectador sai do cinema com um sorriso. Essa diferença de dramaturgia caracteriza de certa forma o cineasta aqui abaixo do Equador. Ele tem medo do entretenimento, tem medo de seu filme ter um final feliz, tem medo de regras tradicionais de dramaturgia. Ele está sempre achando que existem as regras tradicionais da dramaturgia imperialista e, para não ser dominado, tem que alterar aquelas formas. Isso é bobagem. O cineasta ao sul do Equador sempre acha que a ele cabe fazer cultura. O europeu e o americano fazem entretenimento. Tanto que, aqui no Brasil, o cinema está subordinado ao Ministério da Cultura. Então, o cineasta está sempre preocupado em que seu filme seja uma obra de arte. Eu diria até que os europeus foram um pouco maquiavélicos com as cinematografias, digamos, marginais. O número de prêmios que recebemos em Festivais Internacionais é fantástico. Mas a nós não cabe os grandes mercados. Pensava muito nesse assunto, quando pretendia fazer um novo filme. Cheguei a pagar os direitos de um roteiro que tratava do mundo da marginalidade, personagens trafegando sem identidade para refletir a agonia da busca de um intelectual. Na época esse roteiro refletia o meu estado real. Mas, lentamente, comecei a sentir necessidade de sorrir. Pensei: “quero voltar a encantar o próximo”. Quando vi a peça do Mario Prata em São Paulo, ela me tocou muito. Mas não consegui ver uma forma de adaptação cinematográfica. Apesar disso disse ao Prata que gostaria de conversar sobre o assunto. Eu também vim do interior, tinha vivido aquela mesma época e também queria romper a seriedade daquilo que nos foi sério. Eu mesmo fiz um outro filme sobre o período, sobre terrorismo, “Paula”, querendo ser sério. Essa tentativa de fazer um balanço da minha geração não deu certo. BESAME MUCHO não é balanço de coisa nenhuma, nem pretende resgatar nada. Eu tinha pedido os direitos da peça ao Prata ainda sem saber como daria a ela uma forma cinematográfica. Mas não tinha assinado nada, nem pago nada. Quando a peça foi montada no Rio de Janeiro, fui ver a estréia, pois tinha medo que a peça fosse muito paulista. A ótima reação do público carioca ajudou-me a decidir. Nessa ocasião disse ao Prata que iria fazer o filme. Com essa idéia: quero fazer sorrir, quero encantar o próximo, quero brincar—já que BESAME MUCHO é um texto lúdico.
Essa declaração mostra uma mudança radical de posição para um cineasta com suas convicções políticas, não?
Você tem razão. Até pouco tempo atrás os cineastas brasileiros preocupados com o seu país faziam questão de dizer que não estavam preocupados com o público. Acho isso um absurdo. Quando Eisenstein fez o manifesto da cor, começou dizendo que a cor iria trazer mais público ao cinema. Ele preocupava-se com o espectador. Eu gostaria que o cinema pudesse ser aquilo que chamavam de arte popular. Para mim, arte popular não é aquela produzida pelo povo, mas a feita por profissionais, para ser consumida pela massa. Não estou absolutamente interessado em fazer discurso populista. Então para mim o Cinema é uma arte feita por profissionais e dirigida para a massa, com a meta de atingir o máximo possível de espectadores. Não quero filme para passar só no Belas Artes.
De repente, os cineastas brasileiros parecem ter jogado fora aquela goma de “pseudo-seriedade” e partido para a realização do que realmente querem, não do que lhes é exigido. A que você atribui esse repentino despudor?
Para mim isso é uma coisa muito positiva e tem relação com a própria História do Brasil. O país passou a viver uma fase mais capitalista. Dentro desse capitalismo você tem que vender mercadorias. De botões a filmes. Assim, o compromisso é mais vasto. Antes, o criador assumia muito mais um compromisso com a História, com a Sociologia, com o Populismo que estava na moda. Então ele era obrigado a fazer o pastiche da seriedade. Muitas vezes o resultado era realmente sério. Há grandes momentos desse passado. Nessa época a preocupação do cineasta era com a Cultura, a História. Ele se via como um revolucionário da arte. Sentia-se obrigado a atirar contra o Sistema. Hoje ele sabe que precisa produzir um mercadoria que será ou não consumida e que, projetada para o futuro, poderá ou não se inscrever na história de uma cultura. Os cineastas agora não estão mais preocupados em escrever a história da sua Cultura, estão preocupados em vivê-la. Não cabe ao artista estar fazendo o seu próprio balanço, como acontecia até bem pouco tempo. Esse balanço será feito pelas próximas gerações.
Você já disse que o filme não pretende resgatar nada. Como você o vê, então?
Todos os que viveram a época vão se reconhecer. Então eu vejo BESAME MUCHO como uma psicanálise de pobre. O sujeito vai ao cinema, paga o ingresso e busca a sua vida. Se chamarem a isso de alienação, acho ótimo. O espectador vai montar a sua vida com os dados que eu ofereço. Com os dados que ofereço, ele pode montar sua vida, seu próprio filme, depois que sai da sala de projeção. Se voltar, poderá ter uma leitura diferente da primeira. BESAME MUCHO sempre vai permitir que o espectador descubra novos elementos. O filme é uma caixa de surpresas porque se o espectador tiver por volta de 40 anos, vai revivenciar uma fase de sua vida. O jovem, por sua vez, vai rir, porque verá a repetição de coisas que está vivendo na idade dele. Sempre nesse clima mágico e lúdico. Aí está a brincadeira do cinema. Apagou a luz, vamos brincar.
Todo o trabalho de preparação de BESAME MUCHO foi paralelo ao seu trabalho na produção de O Beijo da Mulher Aranha?
Quando cheguei a Cannes em 1985, para mostrar o Beijo, já estava com o roteiro de BESAME MUCHO debaixo do braço, em outras línguas, com orçamento pronto. Hector Babenco e eu ficamos tentando vendê-lo, tentando uma co-produção. Nosso sonho era montar o mesmo esquema do Beijo… Não conseguimos. Depois fui a Madri, onde cheguei a discutir até elenco com uma produtora espanhola. Queria uma produção hispano-americana, pois ela iria garantir um público muito maior, já falada em espanhol, sem legendas. Mas as negociações não caminharam e eu então montei o esquema de cotas vendidas aqui mesmo, de bolso em bolso.
Como foi o trabalho no roteiro de BESAME MUCHO?
Hoje a gente tem que assumir que um roteiro pode precisar de várias versões. A miserabilidade da classe cinematográfica brasileira é que faz com que um mau roteiro seja filmado. Daí, ele tem que ser resolvido na montagem. Isso é fantasia porque na montagem não se corrige defeitos de roteiro. O espectador percebe as falhas. No caso de BESAME MUCHO, Prata – ele é co-autor do roteiro – e eu partimos de um princípio básico: esse assunto de fidelidade na adaptação não nos interessava. Nas primeiras versões, fugimos muito do original. Mas acabamos por voltar a ele.
Como você chegou a esse elenco?
Isso também tem a ver com essa mudança de atitude. Antes, havia a preocupação com um pseudo-realismo. Se a história do filme cobria um período de 20 anos, os atores tinham que envelhecer. Depois de ver muitos filmes – principalmente americanos, onde isso era literalmente posto de lado — comecei a refletir. Vou dar um exemplo: em Pic-nic, que aqui se chamou Férias de Amor, William Holden diz: “tenho 18 anos”. Você está vendo que ele é muito mais velho. Nenhum crítico do mundo inteiro levantou o problema de que a cena era inverossímil, porque ela estava dentro de um contexto de dramaturgia que a justificava. Como a nós, abaixo do Equador, foi dado o poder do realismo mas não o poder da magia, achávamos que esse tipo de tratamento era proibido. O nosso discurso era o da estética da fome. Filmar nas ruas. Câmera na mão. Câmera em carrinho não era aceita pois era linguagem imperialista. Então coube a nós desenvolver essa estética da fome que, se deu algumas obras-primas, deu também muita porcaria. Pior ainda, com essa postura, não nos era permitido sonhar. Não nos coube o lado lúdico do cinema. E ficamos com medo de trabalhar numa dramaturgia onde cria-se o ficcional, não o documental. Isso tudo veio à minha cabeça quando eu estava escolhendo o elenco e pensei: “Queria tanto um Fagundes jovem.” Daí pensei: “Por que não o Fagundes como ele está”. Convidei-o e ele aceitou. As convenções de dramaturgia foram assumidas e a direção foi conduzida por esse caminho. O da mágica, do sonho.
Parece que a grande surpresa, em termos de distribuição de papéis, será a Christiane Torloni. Ela tem uma imagem sofisticada, de mulher elegante e sedutora, tipo garota da Playboy. No entanto; ela faz a garota que fica no interior, meio caipira. Como foi isso?
Christiane é uma atriz de grandes possibilidades. Faz uma caipira maravilhosa. Ela respondeu sempre ao que foi pedido. E nunca usou esse dado da “boazuda”, que muita gente liga ao seu nome. O espectador vai levar um susto em ver que o lado sensual e erótico de Christiane só é expresso através das nuances da garota do interior. Vai ser uma surpresa para muita gente. Ela pegou todo o clima lúdico, de fantasia.
E os outros atores?
Filmar foi um constante prazer. Nunca houve climas. Fagundes e Wilker, pela sua geração, viveram muita coisa da época, mas não tentaram achar relação com personagens reais, nem resgatar nada. Trataram tudo como uma obra de ficção. A Glória Pires, apesar de muito jovem, também teve uma vida cheia — casamento, filho, separação — e de sua vivência saiu material para a construção da personagem.
Como o elenco recebeu o roteiro?
Gostaram e logo se apaixonaram pelos personagens. Eu fiz o filme para que os atores pudessem brilhar. Há nele mais de 850 planos, mas não estou interessado em análises sobre o virtuosismo técnico. É um filme de interpretação e todo o elenco gostou disso. Existe uma simetria entre os dois casais, em termos de roteiro e também em termos de decupagem cênica. Mas não tive pretensão nenhuma em fazer com que o espectador ficasse emocionado com a técnica cênica. Tive cuidado para que os requintes técnicos não interferissem com a emoção. Eu quero justamente é que o espectador entre no jogo, ria, chore, brinque. Fiz o filme pensando no espectador.
Quem é o autor da trilha?
Wagner Tiso. Uma trilha totalmente original. Por exemplo: há uma seqüência passada no Bar Riviera, em São Paulo. O Tiso a viu e disse: “Isso me lembra Woodstock”. Então para essa seqüência, ele criou uma música a partir do que ele se lembrava de Woodstock. Foi ele quem pediu. Eu nem tinha previsto música na seqüência, mas ele disse: “Eu freqüentava o bar nessa época. Ele está na minha memória”. Assim, ele juntou suas lembranças e, com perspectiva crítica, criou a trilha para a seqüência.
Não há nenhuma música de época?
Uma parte muito pequena, na cena final do baile, com a orquestra do Sylvio Mazzucca ao vivo. O próprio Sylvio é personagem, é citado no filme. A orquestra dele toca o mesmo repertório que tocava na época.
Como será o lançamento?
BESAME MUCHO é um filme feito para a massa. Não é filme de uma cópia. Serão tiradas, no mínimo 30.
Depois do lançamento de BESAME MUCHO, quais são os seus planos?
Dirigir teatro. Assim terei o prazer da encenação, sem a preocupação com a máquina. Enquanto isso, estarei escrevendo um novo roteiro. Gostaria que ele fosse também, como BESAME MUCHO, voltado para quem está vendo. Sem angústia.