Vestibulando

Atual Editora, 1990.

Este texto, intitulado “O caso do professor Ror”, foi selecionado entre mais de dois mil documentos sobre o século 20 e entregue aos alunos candidatos a uma vaga no curso de ESC R nk (NUL).

Estamos no ano da graça de Deus de 2789.

Sei que vocês, caros leitores, podem achar estranho que o mundo não tenha se acabado ainda em 2789. Pois é, apesar de tudo, o mundo conseguiu sobreviver. Sobreviveu a todas as bombas e contrabombas que o ser humano (e depois os robôs) foram capazes de inventar.

Pois é. Estamos em 2789 e achamos um documento de 1989, ou seja, de exatamente oitocentos anos atrás. Em primeiro lugar, o que é esse tal curso denominado ESC D nk (NUL)? Posso lhes adiantar que é um supercurso tão adiantado, mas tão adiantado, que não adianta eu querer explicar, porque faltam parâmetros para vocês aí do século vinte entenderem. Seria a mesma coisa de tentar explicar a um índio do Brasil, por exemplo, do século 16, o significado de um satélite artificial. Meio difícil.

O que importa é que este foi o texto/documento escolhido pela magnânima junta apuradora desta espécie de vestibular no ano de 2789. Aliás, primeiro milênio da Revolução Francesa. Aquela, lembra-se?

A seguir, vamos mostrar as redações dos vestibulandos do quase final do século 28. Procuramos usar apenas termos que sejam inteligíveis para leitores médios brasileiros do final do século 20. Evidentemente que são documentos altamente confidenciais e não seria bom que você, leitor, saísse contando por aí o que leu por aqui. Isso posto, vamos às principais redações.

N.° 8
O que mais me impressionou neste texto foi o fato de a ação dramática se passar em outubro e o protagonista, o tal de doutor Ror (do qual pouco sabemos) estar, na ocasião, com 82 anos.

Eu tinha a impressão de que outubro não existia mais. Mas estava errado. Fui verificar nos velhos computadores e descobri que de fato o mês de outubro ainda existia. Foi apenas a partir do ano 2376 que outubro deixou de existir. E com toda razão. Não tinha o menor sentido o ano ter doze meses. Desde 2376, portanto, o ano tem apenas nove meses. E com toda razão. Afinal, foi tudo uma questão de numerologia. Descobriu-se que o mundo ia de mal a pior porque o número doze não era nada legal. Assim que sumiram com os meses de outubro, novembro e dezembro, tudo melhorou.

Principalmente nas escolas, porque eram os meses das provas finais. Com isso, aboliram-se as provas definitivamente. Parece-me que isso foi uma iniciativa dos “Meninos Robôs de Osasco”, uma cidade que eu não sei se ainda existe.

Eu dizia, lá em cima, que duas coisas me chamaram a atenção no texto da prova definitiva. Uma era o fato de ainda existir outubro e a outra foi a idade do tal Ror. 82 anos. Um absurdo. Ás vezes, eu até me esqueço que as pessoas viviam tanto naquela época. Mas que absurdo, as pessoas viverem até os 82 anos! Ainda mais 82 anos de doze meses! Que horror! Quando penso como é hoje, me dá um alívio muito grande. Agora, neste final de século 28, os homens nascem com 15 anos e morrem com 35. E as mulheres nascem com 35 e morrem com 15. Foi uma revolução genética por volta do século 23, se não me engano, que veio mudar tudo. As feministas da época reclamaram muito, alegando que os homens saíam ganhando. Diziam elas que um homem recém-nascido (com 15 anos e nenhum de experiência corporal) só se beneficiaria com uma mulher de 15 (já de saída deste para melhor e com toda a experiência corporal possível). Foi uma discussão que durou quase um século. Mas as mulheres, com o tempo, foram percebendo que os homens estavam certos. Como sempre, aliás.

N.° 37
Sinto-me impossibilitado de fazer este trabalho por desconhecer completamente o significado das palavras “telescópio” e “hipersensível”. Fiz uma profunda pesquisa no meu computador T-100 e não encontrei nada parecido. Pela constituição e formação das palavras, telescópio me parece ser algo como “ver o ópio”, droga do final do século 20, se não me falha a memória. E hipertensão é-me mais complicada ainda. Pode ser alguma coisa ligada ao movimento hippie, também coisa do século 20. Mas não tenho certeza e portanto não posso prosseguir este trabalho. Perdão, senhores mestres.

N.° 145
O que mais me chamou a atenção neste texto arcaico e sem o menor sentido, pelo menos para mim, que sou do sexo feminino, é que não há a menor indicação se a empregada e o mordomo são humanos ou robôs. E, se são robôs, de que geração? Isso pode parecer sem sentido para pessoas lá do século 20, mas não para nós aqui do final do século 28.

Qualquer criança hoje em dia está cansada de saber que um robozinho dos mais vagabundos, da oitava geração para cá, desvendaria o crime sem ter que chamar ninguém. Principalmente um robô mordomo, ou seja, um robormo. Os robormos foram criados por um cientista que era também escritor de ficção e policial do século 24, se não me falha a memória. Ele partiu do princípio (o nome dele era Rani Mese) de que o mordomo é sempre o culpado, tão em voga na literatura de baixo nível do final do século 20, mais ou menos.

Portanto, senhores e senhoras, não posso concluir nada, pois faltam-me estes elementos básicos. Eram robôs ou não?

Sem essas informações me nego a prosseguir.

N.° 201
Lindos olhos tinha a filha do morto. Está lá no texto. Se o texto está afirmando que ela tinha lindos olhos, podemos concluir que nem todos naquela sala têm olhos bonitos. O que nos leva a crer que, quando a cena aconteceu (outubro de 1989), as pessoas ainda tinham os olhos com os quais nasciam. E, por conseguinte, tinham os cabelos, as bocas, os narizes, tudo, enfim, com que vieram ao mundo. Nossa, como devia ter gente feia naquele tempo! Me parece que, naquela época, só se fazia transplante de órgãos internos. Realmente, a medicina computadorizada estava dando seus primeiros passinhos, ainda de fralda. E, o pior ainda, de fralda descartável.

No começo, segundo os livros de cinco a seis séculos atrás, as pessoas escolhiam o olho mais bonito, o nariz mais bonito, a orelha mais bonita, os seios mais bonitos, os órgãos sexuais mais bonitos, tudo o mais bonito, e se autodeterminavam, como se dizia naquele tempo. Diziam as lendas que não deu muito certo. A pessoa com tudo que tinha de mais bonito ficava totalmente sem graça. Foi quando descobriram que todo o mundo tem que ter um pedacinho feio. Um nariz meio torto, uma orelha meio de abano, um dente meio saltado, um pelinho saindo do nariz, um pênis meio torto para a esquerda (ou direita). A partir daí, as pessoas começaram a maneirar e cada um foi achando sua própria beleza. Mas sempre com algum defeitinho pra dar charme.

Outra coisa a me chamar a atenção foi a empregada ter dado água com açúcar para ela. Tive que recorrer à memória da minha winchester. Até o século 25 ainda se usava açúcar. Só quando faleceu o último dentista (por falta de dentes no mundo) é que as autoridades perceberam o perigo que era essa droga. Dizem que até hoje alguns viciados usam o açúcar, aspirando com canudinhos pelo nariz. Usam uma expressão antiga para explicar a sensação: um barato!

N.° 435/B2
O texto fala, na sua linha 12, em três aberrações da época em que foi escrito: “polícia”, “repórteres” e “fotógrafos”. É incrível como o mundo mudou tanto de lá para cá. Nem mil anos e hoje temos vagas notícias do que eram, do que significavam essas três palavras.

Pelas informações que chegaram até nosso século, parece-me que as três palavras significavam mais ou menos a mesma coisa. Parece que tanto a polícia, como o jornalista, como o fotógrafo, costumavam, naquele tempo, policiar a vida dos humanos. E me parece também que tanto os jornalistas, como os fotógrafos, como os policiais gostavam de reportar a vida dos pobres seres humanos de então. E ainda uma vez mais, me parece que tanto os fotógrafos, como os policiais, como os repórteres, gostavam de fotografar a vida alheia.

Outra coisa muito interessante que me chamou a atenção foi a necessidade de se chamar um médico legista para se fazer a autópsia. O que era um médico legista é fácil de descobrir. Foi fácil. O mais difícil mesmo foi saber o que era a autópsia propriamente dita. Parece-me tratar-se de uma auto-análise, uma coisa inventada por um louco chamado Freud, que foi esquecido já no século 21. Estava em voga naqueles anos. Devo confessar que não entendi o sentido de um médico legista, ou seja, dentro da lei, fazer uma auto-análise depois de um crime tão banal e sem maiores dificuldades para esclarecimentos.

Todo mundo sabe que bastaria abrir a porta para se ter a resposta do mistério, se é que existe algum mistério neste pergaminho.

N.° 1006 (robô)
Gostaria de falar um pouco sobre a profissão de advogado, profissão esta que existia até meados do século 22. Um dia, lá pelo século 16, se não me falha a memória, uma pessoa desconfiou da outra e chamou uma terceira para ajudá-la. Este homem se chamava Advogado, que é o mesmo que Eduardo em português (língua extinta nos anos 80 do século 23 d.C.).

Depois o mundo foi se enchendo de eduardos, sendo que alguns chegaram até mesmo a governar a Inglaterra (país que afundou em 2085, diante de uma grande maré que veio do norte da França). No Brasil, na época do texto em questão, houve um eduardo que chegou a ser presidente da câmara dos vereadores e um outro que cantava uma música em homenagem às empregadas domésticas antes de elas virarem robôs como eu e me virarem a cabeça.

Os eduardos (ou advogados, como preferem outros) desapareceram quando todos no mundo começaram a desconfiar de todos, principalmente dos advogados (ou eduardos, como preferem uns). Foi assim que todos os eduardos e advogados sumiram definitivamente do mapa regional, astral e robotizado do mundo em meados do século 22, como já disse lá em cima.

N.° 888/54
Estive dando uma olhada no texto da companheira 201 e notei que ela notou que o texto se refere à neta do morto como possuidora de lindos olhos. Agora, ao descrever o detetive (?), o papiro nos fala que ele era alto, forte, cheio de presença, a ponto de ruborizar a netinha do morto. E dá a idade de 28 anos, sugerindo estar no máximo de sua beleza e galantice. Como eram babacas (se me perdoam) as pessoas daquela época. E o sujeitinho ainda estava usando uma capa azul. Segundo Agatha Christie, grande humorista daquele final (e começo) de século, um detetive de capa azul seria incapaz de descobrir qualquer mistério. Mesmo que fosse um mistério tão frágil como esse que o papiro do século 20 nos oferece.

E não é que a netinha de lindos olhos que ficara ruborizada tinha um noivo? Na primeira vez que li o texto, cheguei a pensar que noivo fosse uma corruptela da palavra novo. Uma mistura entre o novo da língua portuguesa, o nuevo da espanhola e nívea, um creme para a pele dos brancos da época, mas que só no século 21 é que se foi descobrir a verdadeira finalidade de tal creme. Mas isso não está em questão no momento. Falava eu da palavra noivo. O que era um noivo? Pois o texto diz lá, claramente, que ela tinha um noivo. Portanto, um objeto de posse. Ninguém tem um noivo impunemente.

Parece-nos uma palavra inventada no interior de São Paulo (região conhecida hoje como Corinthians), entre as aldeias de Lins e Botucatu. Segundo Aurélio, morador daquela região, significa pró-metido e noiva significa pró-metida. Não conseguimos entender por falta de mais registros. Mas o noivo tinha nome e nos leva a uma revista chamada Playboy, mas parece que isso é uma outra história que não tem nada a ver com este crime em questão.

N.°10989/XR3
Pronto, estavam todos diante da tal porta. Pelo que podemos concluir ninguém ali tinha visão de raios-x, como se dizia na época, naqueles idos. Uma pessoa, imaginem, tinha que abrir uma porta para saber o que havia lá do outro lado. Como devia ser monótona a vida, não é mesmo? Ou tinha que abrir ou olhar pelo buraco da fechadura, como era também muito comum naqueles tempos.

O mais estranho é a última frase do texto, quando ele diz que o que ia acontecer depois, só Deus sabia. Acreditava-se, portanto, em Deus. Não no nosso Deus de hoje, palpável, mas num Deus papável, se me perdoam o trocadilho.

Afinal, o que estava do outro lado da porta que, segundo o texto, poderia solucionar o crime? Nada. Abriram a porta e era um quartinho vazio com dois ou três ratos assustados lá dentro.

Segundo outros documentos a que tive acesso no desenrolar das provas, este crime jamais foi solucionado e entrou para a história como O CASO DO PROFESSOR ROR, arquivado ao lado de O CASO DA RUA CUBA, O CASO VOCÊ CHEGASSE, entre outros.