Este livro teve a sua composição iniciada no primeiro dia do mês de julho de mil novecentos e sessenta e três e acabou de imprimir-se em São Paulo, nas oficinas da Impres Cia Brasileira de Impressão e Propaganda, aos vinte dias do mês de fevereiro de mil novecentos e sessenta e quatro. O papel foi especialmente fabricado pela Indústria de Papel Leon Feffer, de São Paulo.
É o que está escrito na última página do meu manuseado e nunca lido Obras Completas de Dostoiévski, Volume Quatro. O exemplar tem, portanto, 43 anos. E, desde que eu me lembre, me acompanha. Outro dia, vendo o danado lá na minha mesa, a minha irmã Ruth me garantiu que foi presente dela nos meus 18 anos, completados no dia 11 de fevereiro de 64. Não me lembro. Pode ser. A Ruth não costuma mentir.
Uma dos romances do volume é Os Irmãos Karamázovi que eu venho ameaçando ler há 43 anos. E, para tanto e tantas páginas, venho carregando o livro para cima e para baixo. É um livro viajadíssimo, posso garantir. Que eu me lembre, já esteve comigo na Alemanha em 78. Em Cuba, em 89. Ficou dois anos comigo em Lisboa e Cascais. Já assistiu a duas Copas do Mundo (São Francisco e Paris) e algumas copas América. Para Montevidéu, pelo menos cinco vezes. E já esteve na África duas vezes. Em 90 e 91. E eu ainda não sei qual era o bode dos irmãos russos.
O livro ainda se mantém em pé, como convém aos bons livros. Capa dura. Por falar em capa, o dourado do título está muito mais para bronze. E o couro está muito puído. Aquela tirinha para marcar as páginas, azul, está com a ponta que dá dó. Desfolhada, literalmente.
O tal do papel especial com que foi confeccionado é fininho, quase uma sedinha. E talvez por isso mesmo, pela qualidade sedal, as duas primeiras páginas foram fumadas ao longo destes 36 anos. Em toda página onde havia algum espaço maiorzinho, percebe-se que uma tesoura andou por ali, retirando nacos retangulares. Não li, mas fumei Dostoiévski. Se você me perguntar quando é que ele foi fumado, eu diria que entre 82 e 86.
A última página tem uns números de telefones anotados. Tem uma tal de Dora, cujo número era (20 anos atrás) 22.8931. Duvido que, se eu ligar lá hoje, atenda alguma Dora. Mesmo porque não me lembro nunca de estar junto – ao mesmo tempo – com uma Dora e o Dosta. Sim, faz tempo que eu chamo esse meu parceiro de Dosta. Qualquer viagem um pouco mais longa e lá vai o Dosta comigo.
Numa página branca entre O Adolescente e Os Irmãos, com a minha letra, está escrito: o insólito deve ser combatido no momento exato de sua manifestação. Jamais saberemos se esta frase é minha, de alguém, ou mesmo do Dosta. Acho difícil que algum dia o nosso querido Fiódor tenha escrito algo tão insólito. E meio capenga. Deve ser minha, a frase.
Na página 778 encontro uma multa de trânsito. Fui pego pela polícia, vejo aqui, na Dutra, a 120 quilômetros por hora, num fusca. Isso foi em 1974.
Pelo jeito, não paguei a dita. Mas me lembro bem deste fusquinha, branco. Comprei com os direitos autorais da minha primeira peça, O Cordão Umbilical.
Voltemos ao Dosta. Sei que um dia ainda vou ler Os Irmãos Karamázovi. É uma daquelas coisas que a gente vai deixando de lado, vai deixando. Por exemplo, um filme que eu nunca vi: E o Vento Levou… Outro dia saí de casa decidido a resolver a lacuna. Comprei em DVD. Cheguei até a tirar da caixinha. Mas achei que não era o momento, ainda. Esse negócio de clássico tem que ter uma certa cerimônia. Há de se fazer uma preparação antes. Não pode ir lendo assim de supetão. Há de se criar um clima, um ambiente. No caso do filme, requer uma companhia. Feminina, se possível. Acho meio viado sentar-se com um homem para assistir – os dois sozinhos, ali – E o Vento levou… Com homem a gente assiste bang-bang. E olha lá.
E, para encerrar, um papelzinho que está dentro dele. Quase não dá para ler mais, com a data de maio de 1969. Foi neste papelzinho que o crítico de literatura Leo Gilson Ribeiro escreveu o primeiro prefácio para um livro meu: O Morto que Morreu de Rir, mimeografado e vendido de bar em bar em 69.
Está escrito ali, com a letra dele: Mario Alberto Prata cria personagens com a facilidade de um escritor experimentado.
Me lembro que guardei esse papelzinho dentro do Dosta para ver se um dia eu pegava a experiência do mestre russo. Negócio de osmose, sabe? O papelzinho está ali há 43 anos. E durante esse tempo todo ainda não consegui a tal da osmose. Quem sabe, se um dia eu ler esse romance, eu não consiga, finalmente, ser um escritor experimentado?
Quem sabe, eu chegue lá… Quem sabe alguém, daqui a 200 anos, vai me ler.
Ou, pelo menos andar comigo debaixo do braço, me fumando de vez em quando?
Já é um consolo. Ou, se preferir, um barato!
Quem sabe…
– Já leu Mario Prata?
– Ler, não. Conheço de ouvido. Fumei a orelha dele!