Você já comprou um colchão?
É difícil encontrar alguém com menos de cinquenta que já tenha comprado um. Mesmos quando a gente se casa, é sempre um padrinho ou madrinha quem vai entrar com o colchão.
Quando a gente se separa, ou vai para a casa do amigo já separado, de um parente ou para um flat. E já, onde quer que seja, tem lá um colchão te esperando. Um colchão com o qual você não tem a menor intimidade. Um não sabe dos prazeres do outro. Ninguém se separa e vai logo comprando um colchão. Depois volta e faz o que com ele? Colchão não cabe em lugar nenhum. O colchão só cabe em você. Fica grudado em você um terço da sua vida. Calado, vendo e ouvindo coisas do arco da velha. Segura todas.
Eu comprei um colchão.
Tudo começou com dores no corpo. Lombares, sabe? A última coisa que o médico te pergunta é sobre o seu colchão. Te condena a uma fisioterapia desgraçada. Acordava com dores. Nunca levei muito a sério anúncio de colchão na televisão, porque todos são iguais e nada criativos. É sempre com aquele casal feliz e lindo de morrer acordando, esticando os braços e se beijando sem escovar os dentes.
É que outro dia eu cai em mim que o meu primo Hugo foi feito naquele meu colchão que havia sido dos meus tios. O Hugo já tem mais de 40, pensei.
Foi quando resolvi tirar os lençóis e dar uma geral nele. Meu Deus, até que estava doendo pouco, o meu corpo. Tinha lugar que quase dava para enxergar o outro lado. E as manchas? Quantas recordações! Aquela ali, que já foi vinho, é de 1983, lá na rua Alagoas. Lembro quem foi ela. Cada mancha um pedacinho da sua vida. Aquela bola de sangue ali, por exemplo.
O primeiro grande problema ao assumir que vai trocar de colchão, é a exposição pública do velho. Sim, ficará algumas horas ali em frente do elevador, depois passará alguns dias lá embaixo. E todo mundo vendo o meu colchão todo manchado, todo rasgado. Um velho. Pensei até em embrulho o bruto, mas não tinha papel nem capacidade.
Eu não sei se todo mundo é assim, mas quando chega mudança no meu prédio, faço questão de dar uma olhada no colchão do casal. Fica-se conhecendo os futuros vizinhos quase que profundamente.
Entrei na loja. Um espaço imenso, cheio de colchões em cima das respectivas camas. Uns cem. A vendedora de colchão se aproxima e dá uma olhada profissional de cima pra baixo em mim. Senti firmeza.
– Quero um que eu acorde sem dores no corpo.
Ainda olhando o meu corpo:
– Um semiorto vai lhe cair muito bem.
Achei divino o nome. Só que era eu que tinha que cair bem nele.
– Pode ser.
Fomos até o semi-ortopédico. Azul clarinho, já viu? Com florzinhas brancas. Fiquei olhando. A senhora, que parecia conhecer tudo sobre colchões, ia dando as qualidades do mesmo enquanto eu, feito bobo, apalpava o coitado com os cincos dedos hirtos. Como se eu entendesse daquilo.
– O senhor não vai se deitar?
– Como? Deitar, agora?
– Deitar, para sentir o colchão.
– Claro, claro.
Achei que toda a loja estava olhando para mim. Deitei de costas e fiquei olhando para o teto. Para mostrar que estava relaxado, quase acendi um cigarro.
– O senhor dorme assim?
– Não, de lado.
Entendi, me virei e fiquei de lado. Ela trouxe um travesseiro e colocou debaixo da minha cabeça. O travesseiro estava em oferta. Eu não sabia quanto tempo tinha que ficar ali, experimentando. Dei uma balançadinha, de leve, para ver se rangia. Não rangia. Pelo menos de leve, não rangia.
– Fica de bruços, agora.
– De bruços?
– Está sentindo como ele se amolda ao seu corpo? Como ele recebe bem o corpo?
Aquilo já estava me dando sono.
Quando ela disse que a garantia era de dez anos, eu senti a responsabilidade que é comprar um colchão. Isso significava que ele deveria ter uma vida útil de uns quarenta anos. Isso significava que eu ia morrer naquele colchão. Será que era aquele? A minha decisão tinha que ser precisa e definitiva. Era uma decisão para o resto da minha vida.
Antes de entrar no meu quarto, ficou uns três dias na sala, em pé, exposto à visitação pública. Impossível não notar aquele negócio no meio da sala. Impossível não fazer algum comentário:
– Semi-orto, é?
– Tão bonito que eu nem usava lençol.
– Tá bem de colchão, hein? Quanto???
– Quando é que inaugura?
Ia ser naquela noite mesmo.
Voltei cedo para casa, os amigos do bar não entenderam. Carreguei o colchão para o quarto. Ficou bonito, lá. Eu mesmo arrumei a cama, alisando, alisando.
Tomei um banho, que ele merecia, é claro. Pus pijama, coisa rara. Do lado o cigarro, o isqueiro, o cinzeiro. Uns livros, uma garrafa de plástico, de água. Ajeitei os travesseiros e me recostei na cama. Puxei o cobertor, acendi o cigarro, alisei o colchão e, ali, sozinho, dez e quinze da noite, chorei feito um menino que tinha saído do berço para a primeira cama, para o primeiro colchão da sua vida.
Acordei outro.