Uma noite com Rubem Braga

Muito difícil diferenciar uma crônica de um artigo, assim como o conto de uma novela e uma novela de um romance. Tem gente que diz que é uma questão de tamanho, de linhas.

Antigamente – mas não tão antigamente – existiam os verdadeiros cronistas brasileiros. A revista Manchete, em seus dias de glória – antes da fase (igualmente válida) de consultório dentário – mandava para a gente lá no interior de São Paulo, não um nem dois, mas quatro cronistas de primeiríssima – até hoje – linha. Como era bom esperar a chegada da revista com o Henrique Pongetti, o Paulo Mendes Campos, o Fernando Sabino e o maior de todos os cronistas brasileiros – bom páreo para o Nelson Rodrigues – o Rubem Braga.

Rubem Braga escrevia crônicas como quem bebia um copo de água. De um só gole. Refrescava a cabeça de todos nós. Estes quatro, mais o Nelson e o Sergio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta) foram os mestres. Até hoje não surgiu ninguém igual a qualquer um deles. Mas o Rubem Braga, que me perdoem os demais, foi sempre o melhor.

Um dia, tive a oportunidade de conhecer o velho Braga. Samuel Wainer – fisicamente parecidíssimo com ele – levou-nos para uns – vários – copos no Pirandello, restaurante de grande badalação no começo dos 80. Eu fiquei ali, deslumbrado, diante daquelas duas sumidades. Lembro-me que Samuel estava dando uma cantada no Rubem Braga para que este escrevesse uma crônica semanal na Folha. Eu ali, ouvindo a conversa dos dois mestres de sobrancelhas desconsertadas, como se o vento estivesse sempre a brincar com elas e com eles. Eis que entra uma mulher feia. Feia não, horrível! Naquele tempo o Maschio exibia uns espelhos nas paredes do seu Pirandello. E não é que a mulher feia-horrorosa foi se admirar – durante alguns bons segundos – num daqueles espelhos, retocando o próprio olhar? Rubem Braga – isto é um cronista – não deixou por menos:

– Os espelhos deveriam refletir melhor antes de refletirem certas imagens!

Estendi imediata e tietamente o guardanapo de pano e pedi que ele escrevesse aquilo para mim e assinasse. E ele fez isso com carinho de pai para filho.

Depois conversamos sobre a morte – este fato ocorreu uma semana antes do Samuel morrer nos braços de uma dinamarquesa (mas isto é outra crônica e fica para outro dia). Eu dizia que falávamos sobre a morte, ou melhor, sobre a cremação depois da morte. E os três diziam que queriam ser cremados depois de morrer. Rubem Braga lembrou que, depois de vários dias que o Vinicius havia morrido (meses antes), descobriram um guardanapo onde ele manifestava o desejo de ser cremado. Mas já estava lá no São João Batista no Rio.

Levamos o Braga para o Othon Hotel e ele, meio sem jeito, meio criança fazendo arte, já fora do carro, ajeitando as melenas igualmente desgrenhadas, disse:

– Olha, para falar a verdade, aquele texto que eu te escrevi, eu não sei se é meu ou de um francês que eu traduzi. Paul Eluard. Ou Valery, não sei mais.

Mas eu guardei o guardanapo. Ainda fui tomar uma saideira com o Samuel num boteco qualquer e, naquela noite, ele me disse duas coisas que eu nunca esqueci. Primeiro, que ele tinha mesmo nascido na Bessarábia e não era brasileiro (já era tempo de alguém escrever isto em algum lugar). E a outra coisa é que, quando ele fundou a Última Hora, em 51, o seu diagramador, um argentino chamado Guevara, sugeriu dar o tom azul ao logotipo do seu jornal.

– Mas pode isso? perguntou Samuel.

– Pode. Vai ser azul, como os seus olhos.

Anos depois, esta história sairia no livro autobiográfico dele, reescrito num tom de texto de revista Veja, sem nada do linguajar gostoso do velho amigo e mestre Samuel Wainer.

Tudo isto me vem à cabeça numa hora, Samuel, que aqui estou eu a fazer crônica no Estadão, ao lado da sua eterna Danuza (continua linda e escrevendo tão gostosamente que os seus olhos azuis iriam chorar, como sempre choraram tão facilmente).

E não é que o Estadão está colocando um azul no logotipo do jornal? Não lembra os seus olhos – é um azul mais marinho. Mas me faz ficar com saudades de você. Você que lançou tantos cronistas com seus olhos azuis, sua sobrancelha sem direção e seus óculos eternamente levantados em cima da cabeça. Como se você visse com o cérebro e escrevesse com o coração. Tudo azul por aqui.

P.S.: esqueci de dizer que o Rubem Braga me disse que crônica é contar um caso e artigo é explicar o caso. E que escrever é uma profissão como outra qualquer.