Sebastião Bernardes de Souza Prata

A Igreja não proibia o tráfico de escravos. Afinal, a Inglaterra (grande financiadora do tráfico) devia muito dinheiro ao Vaticano. Não proibia, mas impunha uma condição: que todos fossem batizados para, em caso de morte na travessia, suas almas não ficarem vagando pelo Limbo. Os ingleses sempre foram muito ingleses, limpando a barra de uma possível culpa. E então cada leva de negros que entrava num navio era batizada em lote. Ou todos se chamavam Joaquim, ou João, ou Pedro, ou José, ou Maria, ou Sebastiana, e assim por diante.

Quando a princesa Isabel acabou com esta vergonha, os escravos mais chegados aos latifundiários da época e que, portanto, não tinham sobrenome, receberam-no daquelas famílias. Foi assim, lá no Triângulo Mineiro, que um negrinho recebeu o sobrenome da minha família. Prata. Este negrinho, escravo do meu bisavô, viria depois a ser pai do Bastiãozinho, ou melhor, Sebastião Bernardes de Souza Prata, ou melhor ainda, Grande Othelo. Com muita honra, meu primo.

Desde pequeno meu pai me contava essa história. Othelo sempre foi o orgulho de todos nós: o primo famoso, umas das maiores unanimidades nacionais, um metro e quarenta de talento internacional. Meu pai, quatro anos mais velho do que ele, lembra-se dele, lá no nosso Triângulo Mineiro, o Bastiãozinho, a vender jornal na rua.

Conheci o primo famoso num restaurante no Rio de Janeiro, o Jangada, em 1975. Grande Othelo estava numa mesa como gostava: bêbado. Alguém disse quem eu era e ele veio até a minha mesa e perguntou humildemente:

– A família Prata não acha ruim eu usar o nome dela?

– Imagina, Othelo, você é o orgulho da nossa família.

Ele subiu no meu colo e começou a chorar como uma criança. Depois, em pé, equilibrando-se em cima do meu joelho, gritava para todo o bar ouvir:

– Um boi deste meu primo aqui dá pra comprar este restaurante inteiro.

Minha família não tinha mais bois, mas ele já nem me ouvia. Não me restou mais nada a fazer a não ser chorar e rir, chorar e rir, ali, abraçado com aquele gigante. Ficamos amigos e mais primos do que nunca, a partir daquele dia.

Às vezes me telefonava:

– Primo, precisamos fazer um trabalho juntos. Um trabalho de ouro, primo!

Fui adiando essa parceria, talvez um pouco temeroso de não estar à altura de tão genial parente.

Voltando de Portugal, onde passei dois anos, um dos meus projetos era escrever a vida dele, desde o tempo do Bastiãozinho. Era este o meu projeto, Luis, para a Companhia das Letras. Fui adiando, adiando…

Esta semana um amigo, o Marinho, me telefonou. Estava fazendo um vídeo sobre o Othelo. Queria umas informações sobre a origem do nome Prata nos documentos dele O Marinho me disse que ele não se lembrava direito do passado dele. Dizia que tinha uns parentes brancos, mas não se lembrava mais. Marinho, triste, percebeu que ele estava perdendo a memória. Meu livro sobre ele não mais seria escrito, pensei.

Na última vez que estive com ele, no Festival de Gramado, a Manchete nos pediu uma foto juntos. Ele desceu do quarto, muito bem vestido, e me cumprimentou como se não me conhecesse. Mas ficou olhando no fundo dos meus olhos, procurando se lembrar de mim, procurando alguma coisa no seu passado. Não gritou como sempre fazia: primo!. Percebi ali, no frio de Gramado, que estava perdendo o meu primo.

Agora ele morreu. Como convém a um grande artista: em pleno outono parisiense. Mais chique impossível.

Morreu o Bastiãozinho, morreu o Sebastião Bernardes de Souza Prata, morreu o Grande Othelo, morreu este Garrincha talentoso que driblava e encantava a todos no palco, na tela, na televisão, na música popular brasileira. Vai, primo, passe direto pelo Limbo, vá para o Céu, talvez com direção do Orson Welles, fazer Deus rir um pouco.