Chico Buarque em Paris

Paris – Somos três do Estadão aqui em Paris cobrindo a Copa, sem contar o meu querido Reali Jr: o Chico Buarque, o Mateus Shirts e eu. Os três, cronicando. Para evitar que a gente escreva a mesma coisa, driblasse o mesmo tema, trocamos fax (o compositor é contra e-mail).

No primeiro sábado, antes de sair a primeira dominical do Chico, chega o fax: Com Os Meus Botões. Um poema, como me diria depois o flamenguista Aluízio Maranhão, nosso redator-chefe. Realmente um poema. Em Paris, entre os colegas jornalistas, não se falava noutra coisa.

Leio orgulhoso. Afinal, fui eu quem convenceu o poeta a escrever crônicas na copa. Tinha certeza que ia dar samba. A crônica falava dos times de botão do Chico e dos que todos nós tínhamos nos anos 50 e 60, pedaços de plásticos concentrados dentro de uma caixa de catupiri, com direito a talco e flanelinha. E todos botões tinham nome, é claro. Mas tinha um pedaço na crônica:

Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão.

Muito bonito. Só que eu gritei:

– Passarinho! Isso é passarinho do Chico!

– O quê que é passarinho?, me perguntou o Mateus abrindo uma garrafa de uísque com os dentes.

– O dedão na clavícula é passarinho!!!

Deixa eu explicar pra você o que é um passarinho. Em 54, o Nelson Rodrigues escreveu uma crônica (acho que na Última Hora) dizendo que a imprensa estava muito chata por falta de passarinhos. E explicava que antigamente era diferente. Que hoje (54) não se mentia mais. Uma vez houve um incêndio na Lapa, mandaram um repórter para lá e reservaram a primeira página. O repórter voltou desanimado: apagaram o incêndio com um regador de jardim. Mas não aconteceu nada que dê notícias? Bem, disse o repórter, tinha um passarinho dentro de uma gaiola muito nervoso. Foi o bastante: Fogo Ameaça Fauna na Lapa.

Era isso: o Nelson estava dizendo que os jornalistas brasileiros não mais aumentavam a notícia, não criavam nenhum passarinho. E nas nossas conversas intercronistas a palavra passarinho é muito corriqueira. Eu, por exemplo, me considero um passarinheiro de marca maior.

Então, pra mim, o dedão na clavícula do Formiga era passarinho. Estava na cara que era. Basta conhecer um pouquinho o Chico. Aliás, um bom, um excelente passarinho. Mas, passarinho.

Passo um fax para a casa do Chico lá em Marais. Não deu dois minutos, toca o telefone. Era ele. Indignado. Não fala oi, nem nada. Raivoso, atacando e se defendendo ao mesmo tempo, parecia a seleção da Nigéria em seus desengonçados momentos de glória. Ele estava mesmo bravo comigo:

– O dedão na clavícula é passarinho? O dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Nunca tinha visto o cara assim, nervoso mesmo. Dei até um passo atrás lá no meu quarto. Fiquei sem jeito. Achei que eu tinha pegado pesado com ele. Afinal, a primeira crônica dele e eu dizendo que o dedão na clavícula era passarinho? Mas fiquei na minha:

– Desculpa lá, mas é. Você vai me desculpar muito, tá tudo muito bom, muito bonito mesmo, um poema e não sei mais o que. Até você ficar sem palavras olhando para a cara do Formiga, tudo bem. Colocar a mão no ombro, tudo bem. Mas jogar botão com a clavícula do Formiga, pra mim é passarinho. Um excelente passarinho, diga-se de passagem.

– Você acha mesmo que o dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Eu achava mesmo:

– Acho!

Ele abre uma risada contagiante e mal consegue dizer, triunfal:

– Cara, eu nunca vi o Formiga na minha vida!!!

Dois dias depois, 19 de junho, aniversário do Chico. Chico fazendo 54 anos e ele foi preso.

Pela tarde, jogariam Nigéria e não sei quem. Fiquei de ir assistir com ele no seu apartamento em Marais. Torcíamos fervorosamente pelo time africano.

Cheguei na hora combinada, vinho nacional debaixo do braço, animado. Toco o interfone. Nada. Espero uns dez minutos, ele poderia estar tomando banho, porque ia jogar futebol antes. Nada. Chegando a hora do jogo. Vou para a rue St. Paul. Tinha um bom boteco lá. Assisto todo o primeiro tempo. Volto para o apê dele. Toco, ele atende, a porta abre, eu subo.

– Fui preso!!!

Nem disse oi. Fui preso!!! Mesmo irritado, dava umas risadas. Preso, cara! Suado, ainda de calção e camiseta do Brasil.

– Preso?

– Eu e o Vinícius! Presos!

Vinícius era um músico que tinha ido jogador futebol com ele. Deu carona pru Chico num carro alugado.

– Dá para explicar?

– Ia chegar na hora, desculpa. O Vinícius me deixou ali na avenida. Quando eu abri a porta do carro pra sair, vinham duas bichinhas holandesas de moto e entraram na porta. Caíram, saiu sangue. Se tem sangue, tem polícia e ambulância. Aqui é assim. A gente tinha que esperar.

– Mas machucou muito?

– Porra nenhuma, um cortezinho de nada no joelho. (mostrou o tamanho do corte abrindo dois dedos) Dois pontinhos. Mas a bichinha ficava gemendo no chão. Eu com medo de passar algum jornalista brasileiro por ali.

– Somos uns 700!

– Pois é. Foi juntando gente e o cara lá no chão. Aí chega a viatura. Pede documentos pra mim e pru Vinícius. A gente não tinha. Eu tava assim, ó, desse jeito. Vou levar documento pra jogar futebol em Paris? Aí começou a complicar. O guarda já telefonou pra outro. Chegou o outro – enquanto a ambulância pegava os holandeses e…

– Como é que você sabe que eram holandeses.

– Tavam de laranja. Aí resolveram nos levar para a delegacia para fazer o B.O. Tentei argumentar com o cara, disse que era famoso no Brasil, que tava cheio de jornalista brasileiro na cidade, que ia ser um escândalo, aquele lero todo. Mas tinha que fazer o boletim de ocorrência. Tinha sangue, eles insistiam muito nisso.

– Sangrava muito (ele fez o gesto com os dedos e o corte estava ficando cada vez maior)?

– Uma bobagem. Aí o segundo guarda consentiu em fazer o B.O. dentro da viatura. Entramos lá dentro eu e o Vinícius no banco de trás e os dois no banco da frente.

– Nome, nacionalidade e profissão. Eu: Francisco, tal, brasileiro, músico. O Vinícius: Vinícius, tal, brasileiro, músico. O cara: data de nascimento. Eu: 19 de junho de 1944 (que é hoje, né?).

– Você ainda não deu espaço para o abraço.

– Deixa eu acabar. Quando eu falei 19 de junho de 44, o Vinícius começou a me olhar meio de lado. Quando perguntaram o nascimento dele, ele: 19 de junho de 1944. Você acredita, acredita? Nascemos no mesmo dia, mês e ano e é hoje. Aí os guardas começaram a achar que a gente tava gozando com a cara deles. Principalmente porque nós dois começamos a nos abraçar, falando em português, nos cumprimentando, né?, e os caras ficando irritados. Meu, eu não acredito. Quando a gente percebeu, a viatura já estava andando. Aí eu vi que eles viraram ali naquela esquina, aquela ali, e eu disse que morava aqui e podia pegar os documentos. O cara subiu aqui comigo e dizia: se você não nasceu hoje a Copa do Mundo acabou para você. Acredita, cara? Só não fui algemado. Vai ligando a televisão aí que eu vou tomar uma ducha rápido.

Ele foi subindo a escada.

– Chico, parabéns!

– Por que?

– Nada… A Nigéria tá perdendo.

– Que merda, cara!