O sapatinho vermelho

Quem inventa as piadas? Eu nunca conheci ninguém que criasse as piadas. As piadas são anônimas, multinacionais e seculares. Já perguntei para o Jô Soares e para o Chico Anísio, nossos maiores comediantes. O Jô me garantiu que só inventou uma. Nem o Ari Toledo, que diz ter 60 mil no computador dele, sabe a origem delas.

Algumas piadas têm a tarimba de um dramaturgo experimentado. A carpintaria de um escritor de talento. Esta, por exemplo:

O pai, acordando o filho para ir à escola. O filho, morrendo de sono, retruca:

– Tenho três motivos para não ir à escola. Primeiro, detesto acordar cedo. Segundo, odeio a escola. Terceiro, quando chego lá os meninos ficam gozando com a minha cara.

No que o pai responde:

– Pois eu tenho três motivos para você ir à escola. Primeiro, que é a sua obrigação. Segundo, que você já está com 54 anos. E, terceiro, que você é o diretor da escola!

Notem vocês que, dramaturgicamente, essa piada segue a linha dos grandes musicais com finale e grand finale. Quando o pai diz você já está com 54 anos é o finale. O ouvinte não poderia imaginar que viria o grand finale: você é o diretor da escola.

O mesmo acontece com os casos. A diferença entre piada e caso é que a piada é ficção. Tanto quem conta como quem ouve, sabe tratar-se, digamos, de uma piada. Já o caso, não. O caso é realidade. Quem conta o caso jura saber onde aconteceu (geralmente na cidade de origem dele, no interior), quem foi o protagonista et cetera. Na pior das hipóteses, diz que aconteceu com uma prima ou um vizinho. Portanto, o caso tem que ter a cara do real, do próximo.

Assim como existem piadas clássicas, existem casos clássicos. Como o que se segue que, juram, aconteceu com um sujeito de São Paulo:

Digamos que ele se chamasse Carlos Alberto e fosse a pessoa mais normal do mundo. Casado, dois filhos já crescidos, perto dos 50 anos, nunca tinha feito análise nem colocado dentadura. Corintiano, talvez. Dentista, com certeza. Afinal, os dentistas são as únicas pessoas normais do mundo. Lá um dia, a sogra, que morava em Porto Alegre, ficou doente, ficou mal, e a sua esposa (Rita, digamos) teve que ir socorrer a velha, acompanhá-la ao hospital.

E eis que o Carlos Alberto fica sozinho e, depois de quase 30 anos de fidelidade, resolve cair na vida. Fazer uma farra. Era a primeira e, provavelmente, a única chance. Enche o bolso de camisinhas, vai para o La Licorne, pega duas gatinhas, leva para um motel e o resto vocês imaginam. Ele gostou tanto que, no outro fim de semana, chamou outro dentista amigo dele, pegaram as mulheres e foram para a casa dele mesmo. Foi uma semana de libidinagem explícita.

Estava o Carlos Alberto assim, quando a mulher ligou de Porto Alegre, dizendo que a velha já estava boa e que voltaria para São Paulo com ela para a devida recuperação. Carlos Alberto limpou toda a casa, passou aspirador por tudo quanto foi canto – nem um pelinho à vista – , desinfetou toda a sua roupa, lavou copos e pratos, cinzeiros e bidês A casa ficou um primor. Mandou dar uma lavada externa no carro e foi receber as duas no aeroporto.

Já no carro, com a esposa ao seu lado, salpicando-lhe beijos, e a sogra, ainda um pouco pálida, no banco de trás, ao entrar na Rubem Berta, deu uma freada e – azar dos azares – um sapatinho vermelho desliza debaixo do banco da esposa para a frente. Ele vê ali a prova dos crimes, sua frio, mas pensa mais rápido. Aponta um out door novo, as duas se distraem, ele pega o sapatinho vermelho, com fitinha e salto alto fino e, discretamente, joga pela janela. Alívio. Mas na segunda brecada sai o outro sapatinho; ele inventa logo uma desculpa, as mulheres olham para fora, e ele, consegue, lívido, atirar pela sua janela o segundo móvel do crime.

Quando chegam em casa, já na garagem, sai ele, sai a sua mulher, mas a sogra fica lá atrás no banco, toda torta, paralisada.

– Está se sentindo mal, mamãe? – pergunta a Rita.

– Não, minha filha… É que, quando eu entrei no carro, estava com os pés inchados e tirei os sapatos. Um sumiu…

E soluçou.