Voando com a bela da tarde

Ela devia ter o quê? Vinte, vinte e um.

Eu estava sentado na 10C, corredor. Ao meu lado, duas poltronas vagas. Ela vem vindo lá da frente e o pensamento começa a dizer aqui, aqui, aqui. E ela se sentou aqui. Levantei-me quando chegou, sou educado, mamãe ensinou. E minha filha acrescentaria: velho tarado.

Sabe gracinha? Pois. Meio esculhambada, despenteada no ponto certo, calça de brim justa e amarrotada. Pele de pêssego, como diria Machado de Assis se cá voasse.

Mal o avião se estabilizou lá em cima, ela foi para o banheiro com uma espécie de frasqueira. Licença, licença, joelho com joelho.

Uns quinze minutos lá dentro, o que já estava me deixando preocupado. A porta se abre e sai outra moça lá de dentro. Quer dizer, era ela, mas tinha trocado de roupa. Devia ter o que agora? Trinta, trinta e cinco? Um tailleur (não sei se é assim que escreve, mas ela usava essa coisa horrível). Quase dei um toque, mas eu não tinha nada a ver com aquilo. Queria dizer que ela era muito mais bonita, jovem. Um pedaço da barra da calça Lee saía para fora da frasqueira me lembrando como ela era há vinte minutos e alguns anos atrás.

Eis que pega uma outra frasqueira, retira duas escovas lá de dentro e dá um trato no cabelo. Alisou aquele desarranjo tentador. Prendeu atrás. Já estava com uns quarenta anos a minha mocinha.

Mas a coisa não parou aí. Pegou lá de dentro o material de pintura. Colocou um espelho na mesinha onde deveria ter colocado um vinho tinto, como eu. E começou a transformação final. Base, rímel, batom. Colocou olheiras nos olhos, sombras, penteou a sobrancelha (que palavrinha…) com um minúsculo pincelzinho preto. Deve ter colocado uns cinco centímetros de base. Sua pele sumiu lá embaixo. O pêssego virou um abacaxi. E, pasmem!, meteu uma pinta falsa na bochecha antes rosada, agora amarelo-malária.

Pronto, ela estava com cinquenta anos. Ou mais.

E eu ali, olhando e começando a imaginar quem é que estaria esperando a moça em Florianópolis. O cara devia ter um mau gosto danado. Quase que eu pensei em falar com ela: como é que o cara vai te beijar, te apertar, se você está com essa gosma toda na cara? Como é que ele vai te beijar toda besuntada assim? Mas tem gente que gosta e eu fiquei na minha.

Foi quando ela tirou uma carta da bolsa. Pelo jeitão do amassado do papel ela já deveria ter lido aquilo umas dez vezes.

Mas leu de novo, ali do meu lado, na 10A. Seu rosto (ou o que restava do seu rosto) foi se contraindo e ela começou a chorar. No começo um chorinho humilde para aquelas alturas. Mas depois a coisa ficou feia. O rosto dela, com aqueles pares e pares de lágrimas foi se melecando com aquilo tudo.

Pegou o guardanapo, passou na cara e agora ela parecia uma velhinha camuflada.

E eu olhando. Rasgou a carta em mil pedaços. Me pediu desculpas, sei lá por que. Pediu licença e foi para o lavatório (que é como se chama banheiro em avião). Desta vez ficou uns vinte minutos e eu ali na 10C apostando comigo mesmo como é que ela iria sair desta vez.

Para meu espanto e alegria, saiu de lá como entrou no avião. Aproveitou que estava no lavatório, lavou tudo, despenteou-se e colocou a velha e boa calça Lee desbotada. Aproveitou e salpicou um sorriso no rosto, como se fosse o talinho de um pêssego. Voltou, joelho-joelho, sentou-se. Agora de tênis.

Limpo e honesto tênis.

E eu, ali, olhando.

Olhando e pensando em quem estaria esperando a menina no aeroporto. Pensando no teor (ou terror) daquela carta.

O avião desceu. Eu desci e fiquei esperando ela para pegar a mala. Eu tinha que saber como ia chegar a menina. O encontro. Como ia ser recebida, de novo com vinte anos. Mas ela não desceu do avião. Não sei se desistiu ou se o seu destino era mesmo Porto Alegre.

Fiquei desesperado, liguei para o Luis Fernando Verissimo. Queria que ele fosse até o aeroporto de lá para ver a chegada da minha menina. Como sempre, ele estava viajando. Tentei o Peninha, o Eduardo Bueno. Secretária eletrônica. Quem mais eu tenho em Porto Alegre?

Ninguém, a não ser ela, a moça da fileira 10.